sob luz forte, desenhos simples
publicado no âmbito de Desenhos, exposição de Catarina Lopes Vicente no Teatro da Politécnica de 5 de Setembro a 13 de Outubro 2018
Entrando num espaço de paredes escuras é a iluminação pontual que nos permite ver desenhos. A reminiscência a palco controla a atenção: o que é iluminado está em cena – é visto, ouvido, tem a nossa atenção. É, por fim, contemplado.
Mas este pedido-exigência de atenção – de quem se coloca debaixo dos holofotes sabendo esse o comportamento das estrelas – é, ainda assim, subtil. São desenhos sérios, dizem-nos as escalas de brancos, cinzentos e negros alternadas com as variações de ocre, das manchas de óleo aos papéis envelhecidos (que culminam em certos casos na madeira da moldura). É simples e silencioso quem decide aparecer sob a luz forte. Assim se entra na exposição de Catarina Lopes Vicente, patente no Teatro da Politécnica até dia 13 de Outubro. E é também por isso que, a partir da exposição Desenhos, poder-se-ia, com maior justiça ou precisão, escrever poemas. Poemas de amor à própria linguagem. Porque Desenhos é também um lugar de desenhos de amor ao próprio desenho ou, o amor de quem, como escreve Nuno Faria, no texto de introdução da exposição, se insere numa “longa mas rara linhagem de artistas para quem o desenho é uma profissão de fé”. Quem se debruça sobre uma matéria – estes desenhos, recentes, como nos é dito - , através do exercício de tradução para uma outra que seriam as palavras, não consegue senão conservar a delicadeza dos primeiros, caminhando para um lugar de maior intensidade, ou propriedade, da linguagem. Mais do que se explicar alguma coisa com o desenho; procura-se dentro do desenho o que é que o desenho diz. Diz-se. É de notar também que as lentidões são muitas vezes céleres. O tempo desdobra-se pela sua experiência – desde quem faz – até quem vê. O tempo é muitos tempos; o processo é um agenciamento de processos. Um desenho lento, de uma lentidão madura e não porque se teme o resultado de nenhum caminho, não terá de ser, por necessidade, um desenho desenhado lentamente. A experiência de tempo é interior ao desenho. Ele é-se lento. No seu começar a ser, cria um plano onde o tempo também se agencia (porventura, o plano de imanência da folha de papel sobre o qual escreve Nuno Faria). E aqui, embora o desenho seja objecto - congelado na forma em que se dá a ver (se torna e_ou aparece) - este desenho que celebra a matéria, apela a tudo o que de mais corpóreo (mas um corpo que emane aura) se pode. As manchas-rasto que existem no conjunto de vinte e um desenhos apresentados no lado esquerdo do espaço expositivo são disso memória. Quase se cheiram. É também este grupo de desenhos que evoca outros autores, como José de Guimarães, entrando numa outra contínua conversa entre artistas. Trazem-me à memória a série de desenhos Alfabeto Africano, pela sua relação e disposição alfabetária, de quem dá a ver um espectro de formas e símbolos. Mas também as pinturas de Mariana Caló e Francisco Queimadela inseridas no projecto Alfabeto Analfabeto, exposto recentemente em Lisboa. Tal como os desenhos de Catarina Lopes Vicente, os dois auto-intitulados alfabetos, evocam caracteres e signos desconhecidos ou mais ou menos representativos (evocações que são por Nuno Faria descritas como esse desdobramento de planos onde entram as referências a outros autores ou signos e o autoreferencial). Outros grupos (a exposição dá-se a ver por pequenos-médios grupos ou núcleos de desenhos que se reúnem sobretudo por técnica – tinta sobre papel; tinta da china e óleo sobre papel; lápis de cor, tinta da china e óleo sobre papel – e semelhança de tamanho) evocam Jorge Martins, nome que consta nos agradecimentos. Catarina parece usar o desenho como quem vê, cheira e percebe o mundo, sem uma especificidade temática, de assunto ou limitativa, mas seguindo um mesmo olhar que se desdobra sobre pequenas minudências da atenção, compreensão e conhecimento. Também em Jorge Martins o tempo se desdobra em muitos, como nos lembra o título da sua retrospectiva de2013 (distribuída entre a Fundação de Serralves e a Fundação Carmona e Costa), A Substância do Tempo – que nesta leitura terá de ser necessariamente múltipla. Associada à exposição existe uma publicação intitulada metal, osso e gesso com tiragem de 100 exemplares numerados. As imagens dominam este pequeno livro: sombras e formas – negro sobre papel, rastos – pequenos trilhos que anunciam ou nos distanciam da presença de uma outra matéria (um fio que foge, um copo que pousa, uma faca que range?), acabando numa espécie de índice de objectos (metal, osso e gesso) que estabelecem relações de diferente ordem com os desenhos que são apresentados em Desenhos – no processo são modelo, no processo são ferramenta, no processo são matéria, no processo são processo. É a exactidão com que os desenhos – e neles, as suas formas, procedimentos e matérias - se apresentam que revela a maturidade dos próprios desenhos; são desenhos maduros que se expõe com as suas subtilezas, processos e lentidões. Já longe abandonaram a tendência excessiva da adolescência. De tudo tão ténue, tudo tão inevitável. Catarina Real, ARTECAPITAL, 2018 |