O panorama quebrado e a esponja
texto publicado no âmbito da exposição O que vem primeiro que tudo de Catarina Lopes Vicente
No livro Snow Crash, Neal Stephenson utiliza a expressão Metaverse para descrever um mundo virtual onde os seus habitantes se encontram imersos. Tudo é possível no Metaverse, dependendo de como os seus habitantes se ligam; para além dos meios, é obrigatório proficiência na sua manipulação. Neste universo de imersão virtual, o herói - Hiro Protagonist - sobrevive graças à sua habilidade para trabalhar os intervalos e as dobras do sistema. Ou seja, no polimento protocolar do mundo virtual Hiro Protagonist é um mestre do atrito: roça contra as paredes desse mundo esférico abrindo uma fissura para o nosso, tornando os dois actuais.
Iniciei o texto com a intenção de escrever acerca dos desenhos de Catarina Lopes Vicente pela perspectiva do panorama como máquina de dar a ver quebrada e escrevi acerca de um skater samurai. Foi uma partida da memória ou uma provocação intencional das mãos? O panorama é um dispositivo de visualização destinado a imergir o observador no seu espanto, produzido por uma sensação de reconhecimento visual e de adesão inconsciente - é uma máquina de dar a ver uma imagem de 360º (uma atmosfera de imagem?), continua e estável, com o observador ao centro. O panorama provoca o reconhecimento e esse é o truque para a adesão do espectador. Catarina trabalha a partir do centro do seu atelier, contra as paredes onde estão colocadas folhas de papel que aguardam inscrições a tornar-se imagem - este é o panorama e Catarina sabe como lidar com ele, decompondo-o, gastando-o, roçando nele até o quebrar, até encontrar os intervalos por onde pode fazer passar o desenho que quer. O desenho que um desenhador quer é sempre o desenho que se descobre. Queremos o que se mostrar. A esponja, humedecida ou seca, tem memória: a forma da esponja altera-se sempre que absorve água até não poder mais, para secar de seguida e retomar a forma inicial, ou uma memória dessa forma. Também é instrumento de apagamento ou rasura; - a passagem de uma esponja sobre um quadro negro deixa dois tipos de marcas: numa camada à superfície fica marcado o trajecto da esponja e, numa camada mais profunda, fica a marca do apagamento ou a memória actualizada das formas. A memória das formas - o reconhecimento - manifesta-se no processo de desenho de Catarina Lopes Vicente, indicando-lhe as direcções para o seu abandono. Desenhar é querer com o corpo e com o pensamento e sabendo o que quer, Catarina prefere não querer isso: este é o problema do domínio dos meios e das técnicas (proficiência, habilidade) e do conhecimento da memória que se desvela (descobre por rasura) e dos gestos e traços que o seu corpo produz (a memória que teima em produzir formas de cópias de si). Catarina parece querer desenhar o que pode e é por essa potência que age. Assim, o panorama imagem deve ser exaurido, tornando-se num espaço ocupado por camadas de saber fazer até ao abandono desse saber e sua substituição pelo que lá estava antes - a memória da esponja. Abandona a memória do gesto da habilidade e da invenção e não consegue, sabendo-o de antemão (imersa no panorama, percebe a atmosfera como a esponja que, não apagando, muda de forma parecendo nova de cada vez). Imagino este processo de consciência da perca de habilidade (deskill em inglês) como um trabalho no tempo de desenho, … tramado. Quebrado (dobrado?) o panorama, aparece a fissura para o que vem primeiro que tudo. João dos Santos, Leiria, 29 de Maio de 2015 |