Fazer emergir à superfície do papel
texto publicado no âmbito da exposição Desenhos de Catarina Lopes Vicente
Catarina Lopes Vicente faz parte de uma longa mas rara linhagem de artistas para quem o desenho é uma profissão de fé. Quer dizer, é uma espécie de trabalho espiritual, realizado diariamente, cujo horizonte não é propriamente a realização mas uma elevação para lá do fazer, a edificação silenciosa de um plano de imanência que dispensa a autoria como finalidade.
É da natureza do desenho — e há alguns raros artistas que, em rigor, se dedicam exclusivamente a esta prática — estar entre planos, situar-se num espaço liminar algures entre a experiência do corpo e o exercício conceptual, com uma temporalidade difusa e complexa que se situa algures entre o tempo imemorial (o anónimo, o colectivo) e o tempo físico do ritual, dos gestos repetidos, do treino, da prática (a prova irrefutável e silenciosa da construção da individualidade e da idiossincrasia). Nos desenhos que a artista apresenta nesta exposição, desenvolvidos em 2018, parece também haver um desdobramento de planos: o desenho situa-se sempre a meio caminho entre a matéria e a forma, o abstracto e a formulação de um vocabulário, a referência a outros autores ou signos e o auto-referencial. Como se oscilássemos permanentemente entre a imagem e o seu negativo, o objecto e a sua ausência, a forma sem referente. A radicalidade do trabalho da Catarina tem a ver com a persistência como vem construindo a sua própria linguagem — a realidade de estar aqui e agora, a pensar e a agir através do desenho —, mas provém também da dimensão subterrânea da sua prática — trazer, “fazer subir” à superfície do papel, gestos conscientes e inconscientes, a inelutável convocação de uma galeria de fantasmas, um conhecimento herdado do passado e projectado, em negativo, no plano de imanência da folha de papel. Nuno Faria, Setembro 2018 |