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texto publicado por ocasião da exposição individual Fôlego, Galeria Diferença, Lisboa
text published for the solo exhibition Fôlego, Galeria Diferença, Lisbon
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Dos gestos que mais me emocionam são os de persistência e de resistência. Considero que não são assim tantas as pessoas que persistem e resistem de verdade. Um persistir que se faz de mansinho, sem aparatos, entre outros tantos gestos quotidianos, necessários à existência, e onde nenhum se tenta impor ao outro.
Estamos perante quatro desenhos de Catarina Lopes Vicente, minha amiga e pessoa criadora que admiro muito. Fôlego – é preciso tomá-lo para ver as suas obras. Tomar o fôlego para nos determos sobre todas as camadas, visíveis e invisíveis, destas imagens estranhas e tão carregadas de tudo. Linhas contínuas, decalcadas a cor sanguínea para fundo branco. Sente-se o cheiro a linhaça e quase se pode sentir a pastosidade da tinta de óleo nas nossas mãos. O desenho à escala das mãos para muitas vezes se tornar desenho à escala do corpo inteiro. O fazer faz fazer; fazer com as mãos, com os olhos, com os braços, com as pernas e com a cabeça; o fazer por inteiro, por camadas que depois se revelam densas e, no final, a condição radical: ser desenho e nada mais. Este fazer lança-nos para a realidade; confronta-nos pelos olhos por se constituir em matéria. Imagens que aparentemente não nos oferecem nada em concreto, uma vez que se tratam de formas abstractas, e que ainda assim contém em si o mundo, porque são inteiras. São incisivas, são frágeis e são susceptíveis ao tempo; elas próprias são tempo. A prática de Vicente vive de um equilíbrio perfeito entre o método de uma escola de desenho e o erro mais banal. É neste equilíbrio – entre a técnica e o inesperado – onde estas imagens ganham vida própria e vão para além de qualquer regra ou referente, seja ele um desenho, seja um objecto tridimensional. Tal só acontece porque Catarina tem a capacidade e a sensibilidade de abraçar o que fica fora do seu controlo, o que escapa à regra, trazendo-nos obras que têm tanto de cru como de sensível. Mas recuemos uns passos largos, pois o trabalho de Catarina começa num qualquer passeio de estrada, numa ida à praia ou durante o mais comum trajecto. Por detrás destas imagens, no atelier da autora, vive uma colecção de objectos com o propósito de construir um abecedário de formas íntimas, mutáveis e, acima de tudo, livres. Tratam-se de elementos tridimensionais que, segunda a própria, estão organizados em três categorias - osso, metal, gesso. No momento em que as suas mãos seleccionam um desses elementos, estes objectos não só passam a ser força geradora de imagens, como mediadores de eventuais tensões que possam existir entre pensamento e acção; entre gesto desenhador e papel. É deste modo que uma linguagem única, dotada de força, resistência e liberdade, se constrói e faz com que a criadora desenhe como quem fala, ou como quem come. – neste exercício de escrita, também eu fui à procura de imagens intermédias e reencontrei-me com a obra de Rebecca Horn, sobretudo com as suas “body-sculptures” [esculturas-corpo]: objectos construídos nas décadas de 60 e 70 cuja existência atravessa a performance e a escultura, numa dependência total do corpo – Há qualquer coisa nos desenhos de Vicente que para mim têm muito de performativo e escultórico. Não me é possível ver as suas obras sem que me surja a imagem da própria, inteira, a molhar e esticar papel — folhas que tantas vezes parecem lençóis, embebidas de água, e com as quais o seu corpo se vê forçado a coreografar –, a fazer as suas próprias tintas, a dar gesso, a escolher objectos, a dar tinta, a desenhar, a decalcar o desenho, a seleccionar, para chegarmos aqui e ter vontade de os abraçar. Quatro sopros, Para quantos gestos e quanta bravura? Para que mundo? Gestos sem tempo porque não têm motivo de existir. Assim se resiste, Assim, para ser inteira. Rita Senra, 2024 |