Gramática gerativa
texto publicado no catálogo lançado por ocasião da exposição metal, osso e gesso de Catarina Lopes Vicente
Antes de se tornar num reconhecido intelectual norte-americano, Noam Chomsky elaborou, em meados da década de 1960, uma das mais importantes teorias linguísticas do último século. Como acontece para a maioria das teorias, na sua origem esteve uma perplexidade que precisava ser resolvida: embora a investigação linguística da época fosse bastante competente na explicação da generalidade das frases que compunham um dado discurso, ela permanecia lacónica no que respeitava a duas questões essenciais: saber como lidar com frases de sentido dúbio e explicar a capacidade humana para conceber (pelo lado de quem fala) e perceber (pelo lado de quem ouve) frases nunca antes concebidas ou nunca antes ouvidas. Ou seja, Chomsky investiu todo o início da sua carreira académica na descoberta da mecânica do sentido: esse passe de mágica que faz com que a partir de um conjunto limitado de caracteres/letras ou de sons/fonemas possamos criar uma infinidade de sentidos que outros reconhecem imediatamente como tal. A teoria de Chomsky ganhou o nome de gramática gerativa e ela parte de um princípio simples: o dito passe de mágica é uma capacidade inata do ser humano; nascemos com ela, partilhamo-la instintivamente, e é sobre ela que descansa toda a possibilidade de sentido.
Pode dizer-se que uma parte da prática artística de Catarina Lopes Vicente se alimenta de uma intuição próxima da clarividência de Chomsky. Há já algum tempo que a artista colecciona objetos que formam, no seu conjunto, uma espécie de léxico particular. Nele encontramos coisas perfeitamente identificáveis como grelhas ou rodas-dentadas, e outras menos evidentes como fragmentos de utensílios, ossos ou parte de ossos de diversas espécies e pedras de todos os feitios. Curiosamente (ou talvez nem tanto, como já veremos), estes objectos dividem-se em três categorias, dependendo dos materiais em que se apresentam: metal, osso e gesso. É certo que cada um destes objectos tem uma forma – como cada palavra tem um desenho – e estas formas têm sido usadas pela artista como referentes de base para muitos dos seus desenhos. Na sua versão mais directa, eles aparecem enunciados na folha de papel através dos seus contornos, estabelecendo jogos simples de figura/fundo, cheio/vazio, poderíamos mesmo dizer, de modo declarativo. Outras vezes, eles apenas se podem adivinhar, submersos que estão em velaturas de densidade variável e cuja paleta raramente se desvia dos tons cinza, negro e pastel, transformando a sua presença numa espécie de espectros que se pressentem mais do que se identificam. Em outros casos, ainda, os objectos são, eles mesmos, os agentes riscadores (daí que a escolha do metal, osso e gesso não pareça, afinal, aleatória), fazendo a artista deles uso como se de lápis ou barras de carvão se tratassem. Assim, uma espátula tanto pode ser uma forma reconhecível num desenho, como ter sido o instrumento através do qual a artista sulcou, na superfície preparada de um papel, o contorno de um outro objecto ou os ritmos que uma mão treinada pode engendrar. A repetição – esse modo primordial do ritmo – é, aliás, a estratégia mais frequentemente utilizada por Catarina Lopes Vicente. É certo que é através da repetição que melhor se enunciam os seus gestos ou que se materializa a noção de movimento dentro da página; mas é também por esta via que o gesto, que o movimento e a sua inscrição se transformam numa espécie de ritual de aprendizagem sobre as múltiplas possibilidades da construção de um sentido formal. É sobre essa aprendizagem que versa boa parte do trabalho da artista: sobre a capacidade de se colocar a si própria desafios e exercícios que desembocam na criação de obras que guardam sentidos que vão para lá dos resultados formais. A exploração da qualidade táctil das texturas, a particular inclinação pelos altos contrastes, o esvaziamento sígnico que lhe traz a repetição, a aplicação de uma generalizada fluidez, o recurso às velaturas e às escorrências, o uso de máscaras e de trespasses, a incorporação do erro, do acaso e da surpresa são estratégias que servem a criação de contextos para os objectos acima mencionados. Que a toada geral destas obras se aproxime sempre mais de uma abstração do que de um impulso representativo ou descritivo, é um sinal claro de que o que interessa Catarina Lopes Vicente não é a utilização das suas obras para formular comentários sobre determinados aspectos da realidade, sobre o estado do mundo, sobre um dado acontecimento, nem mesmo sobre a história ou a evolução das artes. O que lhe parece interessar, de facto, é o teste a essa capacidade que as formas (os objectos) e os modos (os contextos) têm de nos levarem a estados de experiência menos objectivos e funcionais e mais vocacionados para o exercício de uma subjectividade que, não obstante, se quer partilhada e abrangente. Como notou Noam Chomsky, para que se possa exercer e partilhar uma dada subjectividade, há que estabelecer, a montante, uma estrutura que a possa sustentar: um conjunto de elementos reconhecíveis e um grupo de regras e procedimentos que determinem as condições da sua mútua interacção. Para Chomsky, essa estrutura é exactamente aquilo que permite que algo da ordem do criativo se manifeste. Observar a criatividade e, por consequência, encontrar novos sentidos e novas experiências, é algo que se deve tanto às liberdades que se tomam no uso das regras de uma dada estrutura, quanto à estrutura ela mesma. No reino absoluto dos objectos e das suas formas, a artista vem escolhendo, criteriosa e paulatinamente, aquelas que participam na sua gramática pessoal. Depois de as enunciar e delas fazer referência, tem vindo a explorar as suas valências alusiva e expressiva, como quem ensaia sucintas poesias. No curso da sua (ainda) iniciática viagem, Catarina Lopes Vicente intuiu que é a estrutura que determina a amplitude da sua licença criativa e o alcance potencial dos seus sentidos; sabe que tudo se joga nesse intervalo entre o que pode ser e o que parecia inimaginável; tem nas suas mãos (e nos nossos olhos) o espanto do presente e do futuro da sua gramática gerativa. Bruno Marchand, 2019 |